A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la.
A inclinação do sol vai
marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a
primavera que chega.
Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a
alegria de nascer no espírito das flores.
Há bosques que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur.
Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as
árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares e certamente conversam: mas tão baixinho que não se
entende...
Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece...
Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste
ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos e os ouvidos que por acaso os ouvirem não
terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.
Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas
vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos... Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo
enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.
Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a
primavera, dona da vida e efêmera.
("Cecília Meireles - Obra em Prosa - Vol.1", Ed. Nova Fronteira,1998, pág. 366)
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